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O vírus da dívida

Hoje, estamos empenhados no combate ao coronavírus. Espero que não ignoremos a importância de combater o verdadeiro vírus da dívida.

Portugal é um país confinado. Vivemos, há mais de um mês, um confinamento geral motivado por uma terceira vaga da pandemia que podia (e devia) ter sido antecipada e mais bem preparada. Se as falhas do ano passado podem ser justificadas pelo desconhecimento sobre aquilo que enfrentávamos, o mesmo já não acontece hoje, quando conhecemos melhor o vírus que estamos a combater. Os erros são, hoje, menos admissíveis. Chegamos a um confinamento inevitável, face à impreparação do governo para enfrentar este primeiro trimestre de 2021. Se os erros do ano passado podem ser compreensíveis, os de hoje são inaceitáveis. E mais grave será cometer erros por antecipação, para futuro. Esses, então, serão inadmissíveis.

Uma das dimensões mais importantes para o futuro de Portugal, esse futuro que não admite erros, é a gestão da dívida pública. Quando olhamos para o ano passado encontramos um cenário preocupante. Por um lado, a economia portuguesa contraiu 7,6% face a 2019 e, por outro lado, a dívida pública atingiu os 270,4 mil milhões de euros, mais 20,4 mil milhões de euros face a 2019, segundo dados oficiais do Banco de Portugal. O que é que isto significa? Que acrescentamos à pior recessão da democracia portuguesa, o recorde de dívida pública em termos absolutos e em termos relativos, face ao PIB. Atingimos os 133,4% do PIB em dívida pública. Aliás, no ano em que a economia perdeu 15,4 mil milhões de euros, a dívida aumentou em 20,4 mil milhões de euros. Se isto não é alerta suficiente para um debate sério sobre a sustentabilidade da dívida portuguesa, o que será?

Em 2011, por força do pedido de ajuda externa do Governo PS, a dívida passou de 100,2% para 114,4% do PIB e, em 2012, esta cifra atingiu os 129% (dados Pordata). Nesses anos, entre 2011 e 2015, habituámo-nos a ler artigos, manifestos ou comentários televisivos sobre a insustentabilidade da dívida portuguesa e a necessidade da reestruturação. Aliás, no final de 2011, um Vice-Presidente da bancada parlamentar do Partido Socialista chegou a afirmar que se estava “marimbando para os bancos alemães que nos emprestaram dinheiro nas condições em que nos emprestaram. Estou marimbando-me que nos chamem irresponsáveis. Nós temos uma bomba atómica que podemos usar na cara dos alemães e dos franceses. Ou os senhores se põem finos ou nós não pagamos a dívida”. Este Deputado do PS, em 2011, é o ministro das Infraestruturas e Habitação do XXII Governo de Constitucional. Quem lê os seus artigos ou ouve as suas intervenções hoje, pode não acreditar que se trata de um Ministro de António Costa: Mas é.

A partir de 2015, num tempo em que a relação entre a dívida e o PIB já anunciava uma descida face aos números do crescimento económico, o país conheceu uma nova narrativa: não importa o volume absoluto da dívida, mas a relação com o PIB, porque é isso que representa a capacidade de pagamento. Chegamos a 2021 e face a um choque sistémico – como é a pandemia – vemo-nos confrontados com a realidade. Na verdade, é a revelação do que era óbvio há muito: o valor absoluto da dívida tem vindo a aumentar estruturalmente e a relação com o PIB tem vindo a diminuir circunstancialmente.

Chegamos a 2021 e enfrentamos um cocktail explosivo: uma recessão económica severa com uma dívida pública insustentável. A propaganda que, infelizmente, já se tornou mais comum do que as notícias ou reportagens independentes, vende-nos, de semanas em semanas, taxas de juro em mínimos históricos. O que não conseguimos ver, ouvir ou ler é o que justifica essas taxas. Desde 2015 que o Banco Central Europeu adotou políticas monetárias expansionistas e não convencionais de compra de dívida pública em mercado secundário que têm baixado significativamente os custos de financiamento dos Estados-Membros da Zona do Euro. O Asset Purchase Programme (APP), inaugurado por Mario Draghi e mantido – e reforçado – por Largarde, tem sido a “bóia de salvação” das taxas de juro.

Em 2020, com o Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP), que hoje já se cifra em 1,85 mil milhões de euros, essa política não convencional ganhou outra dimensão e é, hoje, a grande garantia que permite a Estados-Membros, como Portugal, aceder aos mercados nas condições em que o faz. Aliás, em 2020, o Banco Central Europeu absorveu dívida portuguesa no seu balanço no equivalente a 52,2% das necessidades brutas de financiamento do país. Acima de nós, no ranking das compras de dívida pública em 2020, por parte do banco central da área do euro, apenas o Chipre, com 59% das necessidades de dívida.

Aqui chegados, o debate sobre a dimensão da dívida como entrave a políticas orçamentais mais expansionistas está ausente do panorama nacional. Joaquim Miranda Sarmento alertava, oportunamente aqui no ECO, para a narrativa da dívida pública como parte da farsa orçamental, mas apenas falámos sobre o assunto quando a Comissão Europeia admitiu que os empréstimos contraídos no quadro do Mecanismo de Recuperação e Resiliência contariam para o cálculo da dívida pública (para efeitos do Pacto de Estabilidade e Crescimento, com regras entretanto derrogadas, por força da pandemia).

No plano europeu, um manifesto assinado por vários economistas (em Portugal, apenas Francisco Louçã), pedia o perdão de dívida por parte do BCE aos Estados-Membros da área do Euro. Neste caso, os tratados impedem expressamente um financiamento monetário dos défices e as consequências de um perdão de dívida (na desvalorização da moeda, no agravamento da inflação ou na exponenciação dos juros da dívidas soberanas) seriam catastróficas para as economias da Zona Euro. Ainda assim, o debate está presente, como não está em Portugal, desde 2015. De resto, muitos debates fundamentais para a sociedade e economias portuguesas estão adiados desde 2015.

Em 2021, Portugal e a União Europeia enfrentam o desafio da recuperação económica. O confinamento generalizado deste primeiro trimestre não elimina a esperança, mas mitiga-a consideravelmente. As falhas no plano de vacinação revelam-nos que a imunidade de grupo chegará mais tarde do que o previsto. E os números que nos chegam da execução orçamental provam que ao discurso da ambição corresponde uma prática de contenção. Os tempos difíceis e exigentes que vivemos exigem ambição e competência, tanto no discurso como na ação.

A pandemia da Covid-19 revelou-nos um vírus que mudou as nossas vidas, no último ano. A verdade é que as consequências dos confinamentos inevitáveis revelaram fragilidades estruturais da nossa economia, como a dívida pública que fomos acumulando.

Num tempo em que estamos a discutir dimensões fundamentais do nosso modelo económico, não podemos esquecer a dívida pública e a barreira que constitui para uma estratégia mais ambiciosa para a nossa recuperação. Hoje, estamos empenhados no combate ao coronavírus. Espero que não ignoremos a importância de combater o verdadeiro vírus da dívida.

Referências

1. https://eco.sapo.pt/2021/02/02/economia-caiu-76-em-2020-e-a-pior-recessao-da-democracia/

2. https://www.bportugal.pt/comunicado/nota-de-informacao-estatistica-divida-publica-dezembro-de-2020

3. https://eco.sapo.pt/2021/02/02/divida-publica-fecha-2020-nos-1337-do-pib-um-novo-recorde/

4. https://www.pordata.pt/Portugal/Administra%C3%A7%C3%B5es+P%C3%BAblicas+d%C3%ADvida+bruta+em+percentagem+do+PIB-2786

5. https://eco.sapo.pt/opiniao/ainda-a-farsa-orcamental/ fbclid=IwAR3rgEa2sDtaqgLltUxoImwODkislE1Y8UlTIVNUG3pm1BwiZjmnChWkD0o

6. https://annulation-dette-publique-bce.com/

Fonte: ECO