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A decisão socialista: proteger famílias ou orçamentos?

As respostas que o país precisa não estão na propaganda nem em querelas políticas e institucionais com a maioria parlamentar ou o Presidente. O que o país precisa é de confiança e segurança.

O desconfinamento progressivo destas semanas cria a ilusão de um regresso a uma relativa normalidade, da qual ainda estamos longe. A situação particular de Portugal face a outros países europeus, em que a pandemia volta a agravar-se, pode criar a ilusão de uma “excecionalidade portuguesa”, que não existe.

A decisão instrutória sobre a Operação Marquês e as respetivas ondas de choque (naturais para um país que confirma, com uma decisão judicial, que um seu antigo Primeiro-Ministro mercadejou o cargo) podem levar-nos a secundarizar outras polémicas. A verdade é que apesar destas distrações (que são naturais) e de toda a propaganda a que estamos sujeitos há muito (e que é intencional), temos um país que enfrenta uma pandemia sem tréguas, uma crise económica severa e uma crise social profunda.

Em 2020, a recessão económica cifrou-se nuns impressionantes 7,6%, com a Comissão Europeia a prever uma recuperação de 4,1% em 2021, nas suas previsões económicas de Inverno. Chegados ao final do primeiro trimestre deste ano, essa perspetiva parece ser ameaçada pelo confinamento decretado nestes primeiros meses. Aliás, o próprio Fundo Monetário Internacional, nas suas previsões económicas globais, revê significativamente em baixa, as perspetivas de crescimento da economia portuguesa, passando dos 6,5% de Outubro para os 3,9%, nesta edição de Março.

Estes números são mais do que cifras ou percentagens, mas representam dificuldades concretas. O desemprego parece ter estabilizado, para já, nos 6,9% (ainda que o Banco de Portugal preveja um aumento até os 7,7%), mas só em Fevereiro registou-se um aumento de 1,8% de registos face ao mês anterior e de 36,8% (!) face a Fevereiro de 2020. Isto significa mais 116.281 pessoas no desemprego.

Este é o momento, portanto, para fazer duas reflexões importantes. Por um lado, a nível nacional, sobre a suficiência das soluções de um Orçamento do Estado aprovado antes do agravamento da pandemia e deste confinamento prolongado. Por outro lado, a nível europeu, sobre a celeridade dos instrumentos ambiciosos que aprovámos e a sua dimensão financeira. Em qualquer dos casos, esse debate deve ser feito com seriedade sobre a adequação das soluções, com flexibilidade face à realidade dinâmica que vivemos e com responsabilidade quanto aquilo que os portugueses esperam dos decisores políticos.

Estas reflexões são ainda mais importantes por duas ordens de razões.

  • Em primeiro lugar, quando passam dez anos sobre o pedido de resgate financeiro, importa saber que lições tiramos da última crise, ainda que tenham natureza significativamente diferente (desde logo porque sabemos bem quem são os responsáveis pelo descalabro de 2011 que, curiosamente, fazem capas de jornais por estes dias). Uma década depois, reconheça-se, valorizamos mais o valor da política económica contra cíclica, da política monetária não convencional ou do incremento do investimento, sobretudo público. Mas também devemos reconhecer que perdemos a oportunidade para fazer reformas estruturais que teriam preparado a nossa economia para o choque económico que vivemos. Há uma década éramos um mau exemplo, ao lado da Irlanda. Hoje, a Irlanda cresce 3% num ano de recessão generalizada. Aprendemos pouco sobre o valor de uma fiscalidade mais amiga do investimento e do emprego, da flexibilidade e da segurança na legislação laboral ou da política ativa de captação de investimento. Não fomos assim tão bons alunos.
  • Em segundo lugar, enfrentamos hoje dois planos de discussão – nacional e europeu – que motivam um enquadramento mais sério e ponderado do debate político sobre as soluções que encontramos para a crise que enfrentamos. Quero destacar, a nível nacional, a questão dos apoios sociais aprovados pelo Parlamento português e, a nível europeu, a suficiência e a celeridade dos instrumentos de financiamento.

II. O valor da coerência nos apoios sociais

A polémica sobre os três decretos da Assembleia da República (aprovados por todos os partidos, exceto PS) é um sinal muito negativo que o Governo socialista dá a um país que enfrenta as dificuldades que conhecemos. Alguém pode discordar que os atuais apoios a trabalhadores independentes, pais em teletrabalho ou profissionais de saúde são insuficientes? A discussão pode ser colocada, pelo Primeiro-Ministro, no plano constitucional, mas é, antes de tudo mais, uma discussão política, se não quisermos afirmar mesmo moral. Quer mesmo o Governo apoiar estes portugueses? Ou, uma vez mais, não quer fazer corresponder o discurso à prática política?

O artigo 167º nº2 da Constituição da República Portuguesa (que se aproxima dos seus 45 anos de vigência) é claro: “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”. A leitura apressada desta norma-travão conduz-nos à conclusão imediata pela inconstitucionalidade das propostas, mas é preciso aprofundar bem o que se trata.

Vale a pena, por exemplo, ler a mensagem do Presidente da República Portuguesa, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, reputado constitucionalista, que, entre outros argumentos, aduz que “os três diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar. E, assim sendo, deixando em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado”, acrescentando ainda que “o próprio Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020”.

Por seu turno, a declaração do Primeiro-Ministro prima por uma infeliz desonestidade intelectual, sobretudo quando afirma que “não se alcança forma justa de reconduzir estas leis parlamentares aos limites orçamentais. Como iríamos aplicar esse limite? Dando apoios a uns e não a outros? Dando apenas aos que fossem mais rápidos a pedir, até se esgotar o plafond disponível, e recusando todos os pedidos posteriores? Reduzindo o montante do apoio pago a todos, violando o disposto na lei?”.

Podemos dar as voltas que quisermos, mas a verdade é que António Gosta, ao requerer a fiscalização sucessiva da constitucionalidade destes decretos (que é uma prerrogativa sua, no quadro do funcionamento do Estado de Direito português, mas que lhe coloca o ónus da sua ativação) está a tentar evitar a entrada em vigor destas leis. Aliás, a sua mensagem não é um pedido de fiscalização, mas antes uma declaração de inconstitucionalidade que pede o selo dos juízes do Palácio Ratton.

O cenário é, portanto, bastante claro (e esclarecedor): toda a Assembleia da República (com exceção do Partido Socialista) aprova estes três decretos; o Presidente da República promulga-os, sem que suscite incidentes de constitucionalidade (caso contrário exerceria o seu poder de pedido de fiscalização preventiva); e os cidadãos, famílias e empresas criam uma legítima expetativa sobre estes apoios. Apoios que são, mais que necessários, urgentes. A única barreira à efetivação destes apoios é o Governo e, à cabeça, António Costa.

Esta atitude de grande preocupação com a execução orçamental não deixa de surpreender quando, desde 2015, o Orçamento do Estado é, sucessivamente, incumprido, por defeito. Sim, o Governo tem a prerrogativa da execução orçamental e a Constituição protege o Orçamento que está a ser executado. Mas a verdade é que a autoridade deste Governo está diminuída nesta matéria, depois de anos de cativações que desvirtuaram Orçamentos do Estado aprovados pela Assembleia da República. A única conclusão plausível é que, para o Governo socialista, não importa incumprir o orçamento para cativar investimentos e garantir défices orçamentais mais baixos. O que importa, mesmo, é impedir o aumento (ainda não calculado) da despesa com os apoios sociais (que até pode ser acomodável no Orçamento aprovado). Esta postura choca, sobretudo, quando não existe pudor equivalente quando se trata de desbloquear verbas para a enésima injeção de capital no Novo Banco ou para “enterrar” na TAP, completamente descapitalizada e quase “inviável” graças a esquemas irracionais de nacionalizações sem sentido.

Esta é uma marca muito negativa desta governação, a da incoerência. Se nos habituámos a ela no discurso, vemos hoje que tem reflexo na prática política. De nada vale encher a boca com apoios aos portugueses, se depois não os querem efetivar. Aguardemos, serenamente, pela decisão do Tribunal Constitucional. Esperemos a boa fé numa execução orçamental competente, no caso de uma decisão pela constitucionalidade. Esperemos a coragem, no caso de uma decisão pela inconstitucionalidade, de apresentar ao país uma alternativa a uma vontade da esmagadora maioria parlamentar na Assembleia da República e do Presidente da República Portuguesa.

III. A seriedade nas propostas europeias

A recuperação económica da crise e o apoio a cidadãos, famílias e empresas faz-se, também e sobretudo, no plano europeu. O Plano de Recuperação de 1,8 biliões de euros (entre Next Generation EU e Quadro Financeiro Plurianual) é o maior plano de estímulos da história da União Europeia. A “bazuca invisível” do Banco Central Europeu, de 1,85 biliões de euros, é uma abordagem não convencional da política monetária que está a salvar os orçamentos nacionais e a estabilidade dos sistemas bancário e financeiro.

Entendo que podemos e devemos discutir, desde já, o envelope financeiro do Plano de Recuperação, em concreto do Mecanismo de Recuperação e Resiliência. Por um lado, pode tornar-se insuficiente face aos desafios que enfrentamos na frente sanitária e, sobretudo, em comparação com outros espaços políticos, como os EUA (que contam com um programa de 1,9 biliões de dólares). Por outro lado, o equilíbrio entre subvenções e empréstimos, que foi alvo de intenso debate nas negociações, pode também ser revisto. Ainda assim, com os instrumentos que conseguimos aprovar (em tempo recorde), a prioridade tem de ser a sua execução rápida. O dinheiro tem de chegar às pessoas, às famílias, às empresas. E o debate sobre essa agilização dos programas é, também, urgente.

Neste cenário, é importante sermos sérios nas propostas que fazemos. A União Europeia tem um quadro de competências bem definido pelos Tratados, as suas instituições têm um mandato claro e os seus programas (ainda que executados no plano nacional) têm uma abordagem comum. As capacidades da União são limitadas porque os Estados assim o determinam e choca-me continuar a assistir a líderes nacionais anunciarem grandes sucessos próprios (sobretudo quando conseguem mais euros para o seu orçamento) ao mesmo tempo que acusam a União de insuficiências ou falhas para justificar as suas incompetências.

Os chefes de governo têm de ser sérios na abordagem, sob pena de abrirem a porta a movimentos populistas e nacionalistas antieuropeus que cavalgam, exatamente, os argumentos que muitas vezes são utilizados por primeiros-ministros de várias áreas políticas democráticas. Mas também nós, Deputados ao Parlamento Europeu, temos de ser sérios nas propostas.

Propor, por exemplo, como fez Pedro Marques, uma lógica de helicopter money, em que se distribui dinheiro diretamente pelos cidadãos (no caso da proposta: desempregados, idosos ou com filhos), pode abrir um debate interessante, do ponto de vista académico, mas inconsequente. Nem sequer pela insuficiência atual para suprir as necessidades de financiamento de larga escala de uma medida destas, como bem calculou o ECO, nem tão pouco pela inexistência de capacidade instalada para a concretizar. Trata-se de uma proposta que contraria os Tratados, na medida em que implicaria um financiamento direto dos défices orçamentais por parte da União, concretamente do Banco Central Europeu (proibição que é expressa no artigo 123º n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). Ou seja, entre artigos de jornal (meritórios no conteúdo e na proposta teórica) e efeitos práticos vai um espaço equivalente aquele que escrevia atrás: o discurso e a ação.

O que extraímos daqui? Que também neste debate o Governo socialista está ausente (ainda que presida, este semestre ao Conselho da União) ou coloca os termos da discussão em planos que estão muito longe de se transformar em oportunidades concretas para cidadãos ou empresas.

IV. A decisão: proteger famílias ou orçamentos?

O Governo socialista de António Costa tem de tomar, finalmente, uma decisão. A crise sanitária que enfrentamos não está sob controlo e a prioridade tem de estar na vacinação e na resiliência do nosso sistema de saúde. A crise económica é, hoje, mais severa do que era há meses e só não está pior porque existe a expectativa generalizada dos programas de apoio (nacionais e europeus) que têm de ser acelerados. A crise social é profunda e cada vez mais evidente e, também ela, merece uma resposta cabal. E é aqui que a decisão tem de ser tomada: quer António Costa proteger as famílias ou os orçamentos?

Se escolher a proteção das famílias, o que seria bem-vindo, tem de dar um sinal político forte ao país. Por um lado, fazer dos apoios sociais que está a tentar impedir, uma realidade. Por outro lado, fazer da presidência portuguesa do Conselho da UE um exercício consequente nos resultados que pode apresentar aos europeus e aos portugueses, em particular. Sem se limitar a declarações de princípios ou propostas inconsequentes.

As respostas que o país precisa não estão na propaganda nem em querelas políticas e institucionais com a maioria parlamentar ou o Presidente da República. O que o país precisa é de confiança e segurança. Cabe ao Primeiro-Ministro de Portugal garantir essa confiança e essa segurança. Assim tenha a coragem, a ousadia e a capacidade para o fazer.

 

Fonte: ECO